A Comunidade Quilombola Ilha de São Vicente, no Bico do Papagaio (TO), foi palco de intensos debates sobre direitos humanos, justiça socioambiental e os impactos previstos com a implantação da Hidrovia Araguaia-Tocantins nos dias 30 e 31 de maio. O território sediou o I Encontro de Direitos Humanos e Movimentos Sociais do Bico do Papagaio e Territórios Confluentes e o II Seminário Tocantins, Pará e Maranhão sobre Impactos da Hidrovia Araguaia-Tocantins.
A iniciativa foi promovida pelo câmpus Araguatins da Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), em parceria com o Movimento Estadual de Direitos Humanos (MEDHTO), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e representantes quilombolas da região.
O encontro reuniu professores, pesquisadoras, povos indígenas, Defensoria Pública Estadual e Federal, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), além de movimentos sociais e comunitários. Em diálogo com os moradores da Ilha, foi reafirmada a importância da consulta prévia, livre e informada, prevista na Convenção 169 da OIT — direito fundamental antes da execução de qualquer projeto de grande impacto socioambiental.
“É um prazer voltar à Ilha de São Vicente para participar dessas discussões sobre os grandes projetos que afetam as populações tradicionais. Nosso objetivo é fortalecer o debate da Hidrovia e da luta coletiva nos estados do Tocantins, Pará e Maranhão”, declarou o Pedagogo e liderança do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB PA), Jonas Oliveira Nascimento.
Entre os principais alertas apontados estão os potenciais efeitos devastadores da hidrovia ainda em fase de planejamento como destruição da fauna e flora, contaminação das águas, desequilíbrio de ecossistemas e ameaças à vida e cultura de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
A coordenadora do MEDHTO, Maria Vanir, reforçou o compromisso com a Ilha de São Vicente. “Estamos aqui para apoiar esta comunidade quilombola. Assinamos um documento em defesa do território e protocolamos no Ministério Público Federal e no Incra. A luta pela preservação e pelo respeito à ancestralidade dessa terra é também a nossa”.
O indígena e Militante do Movimento pela soberania popular na mineração (MAM), Takak Nhoti Xikrin , destacou a importância da ação coletiva. “Estamos aqui para contribuir com a resistência e a luta das populações que serão impactadas. É preciso unificar forças e garantir que os territórios não sejam destruídos”.
A Ilha de São Vicente, nas palavras de seus anciãos, é um território onde “o rio corre como o sangue nas veias”. E é justamente essa conexão com a terra e com a água que fortalece a luta contra projetos que colocam em risco o equilíbrio natural e a soberania dos povos.
Em defesa da vida, dos territórios e da dignidade dos povos tradicionais foi a mensagem dos participantes ao final do encontro, selando o compromisso coletivo de resistência, escuta e mobilização.
Entenda o caso sobre a HIDROVIA ARAGUIA-TOCANTINS
A Hidrovia Araguaia-Tocantins é um projeto de infraestrutura hidroviária que ainda está em fase de planejamento e implantação, sendo alvo de debates e disputas entre diferentes setores da sociedade. Idealizada como um importante corredor de transporte nas regiões Norte e Centro Oeste do Brasil, a hidrovia pretende interligar, por meio dos rios Araguaia e Tocantins, áreas produtoras de grãos como soja, milho e arroz a portos estratégicos da região Norte, especialmente o Porto de Vila do Conde, no Pará.
Com aproximadamente 2.500 km de extensão navegável, a proposta da hidrovia visa oferecer uma alternativa mais econômica e sustentável ao transporte rodoviário, reduzindo custos logísticos, o tráfego de caminhões em rodovias e a emissão de poluentes. O governo federal, apoiado por setores do agronegócio, defende a obra como fundamental para o escoamento da produção agrícola do chamado “Arco Norte”, especialmente dos estados de Mato Grosso, Pará, Tocantins e Goiás. No entanto, o projeto ainda não foi totalmente executado devido a uma série de desafios técnicos, ambientais e sociais, e tem gerado forte resistência por parte de comunidades ribeirinhas, indígenas e organizações socioambientais.
Um dos principais entraves é o Pedral do Lourenço conhecido como (Lorenção), um trecho de rochas no leito do rio Tocantins, entre Marabá e Itupiranga (PA), que impede a navegação durante boa parte do ano. Para torná-lo navegável, está prevista a realização de obras como dragagem e derrocamento, que podem causar impactos ambientais irreversíveis. Essas intervenções colocam em risco a fauna aquática, a qualidade da água e o equilíbrio dos ecossistemas fluviais.
Além disso, há o temor de que o projeto leve ao deslocamento de famílias que vivem às margens dos rios, afetando o acesso à terra, à pesca e à agricultura de subsistência, pilares da segurança alimentar e da cultura tradicional dessas populações. Muitos moradores locais denunciam a falta de diálogo transparente por parte das autoridades e a ausência de consultas públicas efetivas, conforme previsto na legislação brasileira e em tratados internacionais que protegem os direitos de povos tradicionais.
Há uma crescente preocupação de que o projeto seja conduzido sem a devida consideração dos impactos sociais, gerando conflitos fundiários, perda de territórios e aumento da desigualdade regional. Por isso, é fundamental que a implementação da Hidrovia Araguaia-Tocantins seja precedida por estudos de impacto ambiental e social detalhados, com participação ativa das comunidades afetadas, garantindo que o desenvolvimento econômico não ocorra à custa da degradação ambiental e da violação de direitos humanos.